TEORIA DA MENTE EPICURISTA SEGUNDO NIKOLAI A. GUTIERREZ
A
Teoria da Mente Epicurista é um tópico central na filosofia de Epicuro, gerando
debates significativos sobre se ele era um reducionista ou um não-reducionista
em relação à mente. A avaliação correta dessa posição tem amplas implicações
para a plausibilidade do Epicurismo como uma explicação da mente.
Os especialistas se
dividem em suas interpretações:
Ø Julia
Annas argumenta que Epicuro era um não-reducionista.
Ø Tim
O’Keefe argumenta que Epicuro era um reducionista.
A
discussão sobre o reducionismo de Epicuro está profundamente ligada ao debate
entre reducionismo e não-reducionismo na filosofia da mente contemporânea. O
autor do texto argumenta que há evidências de que os epicuristas eram
não-reducionistas, e que eles mantinham uma forma primitiva do que se pode
chamar de visão "emergentista" das propriedades mentais.
Duas
Perspectivas Sobre o Reducionismo Epicurista
1. A Não-Redução de Annas
Julia Annas, em sua obra Hellenistic Philosophy of Mind, defende que Epicuro era
um não-reducionista. Seu argumento é primariamente negativo: ela argumenta que
Epicuro não poderia ter sido um reducionista, baseando-se em uma passagem da
obra de Epicuro Sobre a Natureza 25. Annas descreve o pensamento epicurista
como fisicalista, significando que tudo o que existe é físico e pode ser
explicado pelas leis da física. Isso se contrasta com o dualismo, que postula
duas categorias radicalmente diferentes de coisas no universo: físicas e
psicológicas. Os epicuristas eram fisicalistas, pois acreditavam que todos os
fenômenos resultam do movimento de átomos através do vazio.
Annas
define os termos chave da seguinte forma:
v Fisicalismo:
A ideia de que tudo o que existe é físico, ou seja, se enquadra nas leis da
física e pode ser descrito e explicado usando apenas conceitos e métodos da
física.
v Reducionismo:
A tese de que itens de um tipo podem ser 'reduzidos' a itens de outro tipo, por
exemplo, a mente pode ser reduzida ao corpo. Pode ser caracterizado pela máxima
"existem X, mas eles podem ser reduzidos a Y".
v Eliminativismo:
Um tipo particular de reducionismo que sugere que nossa linguagem
"pré-filosófica" sobre certos fenômenos "não corresponde a nada
real". É caracterizado pela máxima "na verdade não existem X, apenas
Y".
Para
Annas, Epicuro é um não-reducionista porque ele nega que as propriedades
mentais possam ser facilmente reduzidas a propriedades atômicas. Ela baseia
essa conclusão em Sobre a Natureza 25, onde Epicuro argumenta contra um
proponente do atomismo democriteano que afirmava que tudo acontece por
necessidade. Epicuro considerava essa posição inconsistente e autorrefutável.
No
entanto, O'Keefe critica Annas por confundir reducionismo com eliminativismo.
Para Annas, o reducionista quer tratar os fatos sobre a agência humana como
"mera aparência" dos fatos sobre os átomos, sugerindo que não são
reais. O'Keefe argumenta que o reducionista pode aceitar que a mente é real; é
o eliminativista quem "explica" os fenômenos mentais para que deixem
de existir.
Annas
explica que a alma (psique) epicurista é composta por quatro tipos de átomos:
semelhantes ao fogo, ao ar, ao sopro (pneuma) e um tipo inominável. Ela
enfatiza que esses átomos são semelhantes aos elementos, não idênticos, e que o
elemento inominável é crucial para a sensação, pensamento e emoção, sendo a
única entidade puramente teórica no Epicurismo. A relação entre a alma e o
corpo é de interdependência, onde "alma e corpo epicuristas precisam um do
outro para existir e funcionar como alma e corpo".
2. O Reducionismo de O'Keefe
Tim O'Keefe, por outro lado, defende que Epicuro era um reducionista em relação
à mente. Ele interpreta Sobre a Natureza 25 como uma evidência que apoia sua
própria visão.
O'Keefe
define o reducionismo epicurista da seguinte forma: "corpos macroscópicos
não são 'irredutivelmente diferentes' em tipo dos átomos, nem possuem poder
causal além dos átomos. Em vez disso, são apenas agregados de átomos, de modo
que quaisquer propriedades que possuam, incluindo poderes causais, podem ser
explicadas referindo-se aos átomos que os constituem, juntamente com suas
relações espaciais, movimento, etc.". Para ele, os processos mentais são
identificados com processos atômicos.
O'Keefe
aponta três implicações de sua visão de reducionismo:
v A
mente é real: Afirmar que a mente é real não impede o reducionismo. A mente é
identificada com um grupo de átomos, e se os átomos são reais, a mente também
é.
v Agregados
podem ter propriedades que as partes não têm: A alma possui capacidades
(perceber, deliberar, sentir emoções) que os átomos individuais não possuem,
mas isso não significa que Epicuro não seja um reducionista. Um reducionista
pode explicar essas propriedades de "nível superior" (como chorar) em
termos das propriedades e arranjos dos agregados atômicos.
v Elementos
estruturais são utilizados nas explicações: Epicuro e Lucrécio utilizam as
propriedades estruturais dos corpos (tipos de átomos, relações espaciais,
emaranhados) para explicar seu comportamento. Isso é consistente com o
reducionismo, que pode considerar a organização das partes.
O'Keefe
argumenta que Lucrécio frequentemente explica as capacidades mentais "de
baixo para cima" (bottom-up), apelando para as propriedades e relações
espaciais dos átomos que compõem a mente. Ele cita passagens onde os
temperamentos são explicados pelos tipos de átomos predominantes na alma dos
animais e das pessoas.
Em
relação a Sobre a Natureza 25, O'Keefe interpreta que Epicuro está argumentando
que os humanos podem modificar seus temperamentos naturais através da razão,
que ele explica como um processo onde as disposições congênitas são reformadas.
Ele enfatiza que isso não é devido a um "eu radicalmente emergente agindo
sobre os átomos de maneira misteriosa, mas, diz Lucrécio, simplesmente a
razão". A razão permite aos humanos receber e responder a informações do
ambiente de maneiras que os animais não conseguem, e as crenças também
desempenham um papel, permitindo que a responsabilidade (louvor/culpa) seja
atribuída.
Implicações
do Reducionismo e a Proposta do Emergentismo Epicurista
O
autor do texto argumenta que a distinção de O'Keefe entre reducionismo e
eliminativismo, embora importante, não resolve o dilema fundamental para os
epicuristas. A principal preocupação dos epicuristas e de seus críticos é a
eficácia causal das propriedades mentais e sua autonomia.
A
intuição subjacente é que explicar a mente em termos de átomos, ou identificar
a mente com propriedades atômicas, parece minar a ideia de que a mente tem poder
causal próprio. Se o reducionismo deixa todo o "trabalho pesado"
causal para eventos físicos, não fica claro como os estados mentais desempenham
um papel na "cadeia causal".
O
reducionismo, mesmo que evite o eliminativismo, ainda parece classificar os fenômenos
mentais como "de necessidade" ou "por acaso", categorias
que Epicuro queria evitar. Epicuro buscava uma terceira categoria: fenômenos
que acontecem "por nossa própria agência" (em grego, "par'
hemas", "que dependem de nós"). Mesmo a superveniência
sincrônica (onde uma mudança nos estados mentais é acompanhada por uma mudança
nos estados físicos, mas não necessariamente uma relação causal), embora evite
o determinismo causal direto, ainda não mostra como os estados mentais são
"nossos" ou têm poderes causais novos.
Para
superar essa dificuldade, o autor propõe uma interpretação emergentista da
mente epicurista.
O
Emergentismo na Teoria da Mente Epicurista O emergentismo, na filosofia da
mente contemporânea, sugere que sistemas complexos exibem propriedades
genuinamente novas que são irredutíveis e não podem ser totalmente previstas ou
explicadas apenas pelas propriedades de suas partes constituintes. No entanto,
o autor tenta argumentar que o Epicurismo pode ser emergentista e ainda assim
fundamentalmente fisicalista.
Os
dois componentes essenciais do emergentismo são:
1. Superveniência: Os
estados mentais covariam de forma confiável com os estados físicos. Isso
estabelece uma ligação confiável entre o físico e o mental, mas não explica por
que essa dependência existe, e por si só não é suficiente para o fisicalismo.
2. Causalidade
Descendente (Downward Causation): As propriedades de nível superior (mentais)
têm uma influência causal sobre o fluxo de eventos em um nível inferior
(físico), os mesmos níveis dos quais elas emergem. É essa causalidade
descendente que permite categorizar o comportamento humano e os estados mentais
como "que dependem de nós".
Como o Epicurismo pode
ser Emergentista:
v Composição
da Psique: Lucrécio descreve a psique como composta por quatro tipos de átomos:
calor, sopro, ar e um elemento inominável. Esses átomos são finos, minúsculos e
redondos, e a psique tem uma forma gasosa e dinâmica. O elemento inominável é
crucial, pois "imparte o ímpeto do movimento de onde a sensação começa".
Isso é consistente com o fisicalismo.
v A
Psique como "Motor" da Sensação: A Carta a Heródoto descreve uma
interdependência entre mente e corpo, mas enfatiza que a alma é "mais
responsável pela percepção sensorial". O corpo atua como um
"recipiente" ou "vaso" para a psique, impedindo que ela se
dissipe.
v A
Geração de "Poder" e Fenômenos Mentais: Epicuro afirma que a psique,
através de seu movimento, "imediatamente produziu para si mesma uma
propriedade de percepção sensorial e então a deu (por causa de sua proximidade
e relacionamento harmonioso) também ao corpo". O autor interpreta isso
como um processo de três etapas:
1. Os quatro tipos de
átomos da psique exibem um tipo particular de movimento.
2. Esses movimentos dão
origem a um tipo de "poder" ou capacidade da psique (uma faculdade
mental geral).
3. Este "poder"
então produz fenômenos mentais individuais, como percepção sensorial, pensamento,
emoção e memória.
v Não-Redutibilidade
e Causalidade Descendente: Essa estrutura em três etapas sugere que os
fenômenos mentais individuais são propriedades não-redutíveis, pois não podem
ser previstos ou são idênticos a qualquer uma das subestruturas físicas da
psique. Não há uma correspondência um-para-um entre fenômenos mentais
individuais e fenômenos atômicos individuais, o que os torna não-redutíveis. No
entanto, são considerados físicos porque a faculdade mental geral (o
"poder") emerge de uma subestrutura física subjacente.
v A
Razão como Propriedade Emergente: Lucrécio explica que, embora os temperamentos
iniciais em humanos sejam determinados atomicamente (como em animais), a razão
pode "apagar" ou "superar" essas "naturezas
inatas". A razão é interpretada como um desses estados mentais
não-redutíveis produzidos pelo "poder" da psique, que exerce influência
causal descendente sobre as disposições atômicas, distinguindo os humanos dos
animais e permitindo o louvor e a culpa.
A
Ameaça do Determinismo Permanece
Apesar de a interpretação
emergentista oferecer uma solução promissora para o dilema epicurista, ela
enfrenta sérias questões conceituais inerentes ao próprio emergentismo na
filosofia da mente contemporânea.
Os principais desafios
incluem:
v Tensão
entre Superveniência e Imprevisibilidade: Se as propriedades emergentes são
imprevisíveis a partir de suas partes constituintes, como a superveniência (que
implica uma covariância confiável e, portanto, certa previsibilidade) pode ser
reconciliada com a irredutibilidade do emergentismo?.
v Incoerência
da Causalidade Descendente: A ideia de causalidade descendente (onde uma
propriedade emerge de um nível inferior e, ao mesmo tempo, influencia esse
mesmo nível inferior) é vista como paradoxal e com um "ar de autocausalidade".
Como um "poder" mental pode exercer influência causal sobre os átomos
constituintes da psique se esses mesmos átomos ainda estão dando origem a esse
"poder"?.
v Variedade
vs. Faculdade Mental Geral: Há ambiguidade sobre como a grande variedade de
eventos mentais individuais pode surgir sem uma mudança significativa na
faculdade mental geral ou como essa faculdade mental pode mudar sem uma mudança
significativa nos átomos que a constituem.
v O
Problema do Acaso/Aleatoriedade: Se os eventos mentais individuais podem variar
amplamente sem necessidade de mudança na faculdade mental geral, há o risco de
classificá-los como caóticos e, talvez, aleatórios, o que os epicuristas
queriam evitar. A "guinada" (swerve) dos átomos, que Diógenes de Enoanda
e Lucrécio mencionam como o que "quebra as leis do destino" e evita a
"causa seguindo a causa inexoravelmente para sempre", introduz um
elemento de imprevisibilidade. No entanto, os epicuristas não queriam que os
eventos mentais fossem meramente acidentais ou por "chance".
Em
suma, embora a interpretação emergentista seja a melhor abordagem para o
problema do determinismo na mente epicurista, as questões conceituais
subjacentes ao emergentismo geral permanecem sem solução satisfatória. A
plausibilidade da teoria epicurista, sob essa luz emergentista, depende,
portanto, dos desenvolvimentos futuros na filosofia da mente e na neurociência.
Resumo de:
GUTIERREZ, Nikolai A. Epicurean Theory of Mind. Master’s
Thesis. San Diego State University, Fall 2015.