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domingo, 3 de abril de 2022

Hipácia de Alexandria: conhecendo uma pensadora neoplatônica

 

José Aristides da Silva Gamito[1

 

Hipátia, interpretada por Rachel Weisz no filme Alexandria.

1 Vida, pensamento e obras

 

Hipácia de Alexandria nasceu em 375 depois de Cristo, em Alexandria, no Egito. Era filha do matemático Teão. Oriunda de uma cultura que negava a oportunidade da educação para as mulheres, Hipácia recebeu uma formação sólida e se tornou uma intelectual bem sucedida. Ela nasceu numa fase de transição entre paganismo e cristianismo. Depois da liberdade religiosa conferida pelo Império Romano aos cristãos, o paganismo acabou perdendo espaço. Mais tarde, os pagãos passaram a ser perseguidos. Em Alexandria, grande centro cultural do Egito da época, as disputas por hegemonia na cultura e na política geraram grandes desentendimentos e enfrentamentos.

A época de Hipácia foi muito desafiante para os egípcios porque representa uma transição dos valores pagãos para os cristãos. No meio do crescimento do cristianismo, o Museum resistia como um reduto dos intelectuais pagãos. Teão, pai de Hipácia, foi exímio professor de matemática e astronomia nessa instituição. A filósofa provavelmente foi escolarizada pelo pai e acabou tendo acesso às aulas de outros mestres do Museum. Naquela época, estava em voga em Alexandria a escola neoplatônica (WAITHE, 1992, p. 170).

Hipácia estudou filosofia, matemática e astronomia. Tornou-se professora nessas ciências e chegou a dirigir a escola neoplatônica de Alexandria. Ela atingiu o feito raríssimo de ser uma professora remunerada pelo Estado, isto é, pelo Império. Isso se deveu à boa reputação que tinha entre os magistrados e com o prefeito da cidade, Orestes (MARTINO; BRUZZESE, 1996; SALISBURY, 2001). Apesar de ser uma professora famosa e requisitada até por estudantes de nações distantes, ela sofria a oposição dos cristãos alexandrinos por ser pagã. O bispo Cirilo estava travando uma ofensiva contra os pagãos da cidade e um grupo de monges nitrianos enraivecidos atacaram Hipácia, dilaceraram seu corpo e o queimaram. Ela morreu em 415 como vítima de intolerância religiosa. A perseguição que sofreu fazia parte desse contexto turbulento no qual cristãos e pagãos procuravam dominar a cultura e a política no Egito do século V (MARTINO; BRUZZESE, 1996; SALISBURY, 2001).

Hipácia escreveu três obras que são o Comentário sobre o Arithméticum de Diofanto, Comentário sobre a Sýntaxis Mathemática de Ptolomeu e o Comentário sobre as Seções Cônicas de Apolônio Pergeu. As obras foram perdidas, provavelmente, durante a destruição da biblioteca de Alexandria (WAITHE, 1992, p. 174). O pensamento filosófico de Hipácia pode ser reconstituído de modo indireto e hipotético visto que não chegou até nós nenhuma obra sua de assunto filosófico. Hipácia ensinou a filosofia de Platão, de Aristóteles e de Plotino. A informação que temos de que ela foi diretora da escola neoplatônica a filia diretamente na corrente do neoplatonismo (WAITHE, 1992, p. 193).

 

2 A reconstituição do pensamento filosófico de Hipácia

 

O ponto de partida é a recepção das doutrinas de Platão no Egito do século III. Plotino (205-270 d. C.) foi o fundador do neoplatonismo. Essa extensão do platonismo se desenvolveu no Egito e teve influência diretamente sobre Hipácia. Esse pensamento representa a fusão entre as ideias de Platão e as religiões pagãs existentes no Egito. O neoplatonismo busca elevar a visão de mundo dessas religiões. Segundo os neoplatônicos, Deus é único e sua natureza não pode ser expressa por meio de qualidades humanas. Ele é totalmente distinto do mundo. Assim ele é inatingível pelas criaturas imperfeitas. Essas procedem de Deus, mas são imperfeitas e inferiores (MONDIN, p. 126-127).

Plotino ensinava que o Uno (isto é, Deus) pode ser reconhecido imediatamente pelos seres humanos. O universo aponta para isso. Mas esse reconhecimento da existência do divino não torna o ser humano capaz de descrever Deus e de enumerar as suas características. No mínimo, podemos dizer o que Deus não é (essa abordagem chama-se teologia negativa). Tudo que se possa pensar sobre o Uno, ele é mais. Enfim, ele é indizível e inominado. Essa visão sobre o divino traz como consequência uma postura mística, de busca do divino sem a pretensão de descrevê-lo (MONDIN, p. 127-128).

A filosofia de Plotino considerava que todas as coisas procedem do Uno sem prejuízo para a sua integridade. Todas as coisas foram originadas dele. Isso significa que Plotino não acreditava em criação do mundo, mas em processão/emanação. A imagem utilizada para a explicação desse processo é o sol e seus raios. A multiplicidade de criaturas no universo procede do Uno sem alterar a sua existência como os raios provêm do sol sem diminuir sua luz. A processão acontece partindo das criaturas mais perfeitas para as imperfeitas. A criação é toda hierarquizada no pensamento de um neoplatônico. A matéria é a emanação derradeira do Uno e, portanto, é a mais imperfeita e, consequentemente, má. Por isso, ela é fonte de ignorância, sofrimento, envelhecimento, morte. Mas esteja atento para esse ponto. Ela não é um mal absoluto, apenas a negação do bem (MONDN, p. 129-130).

O homem é o ponto central da emanação. Ele reflete os dois extremos da existência: o espírito e a matéria. A alma é entendida por Plotino como distinta do corpo e preexistente a este. A união de corpo e de alma aconteceu por necessidade da existência. Em outras palavras, elas são os pontos de contato entre a realidade perfeita, superior e a imperfeita, inferior. Essa composição provoca no homem um conflito: a alma o eleva e o corpo o rebaixa. Ou seja, enquanto a alma o impulsiona para a realidade espiritual, o corpo quer levá-lo a usufruir da matéria. O dever do homem é reestabelecer a unidade das duas partes com o Uno. O retorno da alma é fruto da liberdade humana e do empenho de sua vontade. Por fim, o caminho para a união com o Uno passa pela ascese (exercícios das virtudes cardeais), a contemplação (através da filosofia) e o êxtase (união mística com o Uno). O resultado final da existência humana é o confundir-se da alma com o Uno (MONDN, p. 130-132).

Considerando os fundamentos teóricos do neoplatonismo, podemos dizer que Hipácia de Alexandria pensava a realidade de modo dualista; Deus era entendido no sentido da teologia negativa; o estudo da filosofia e a prática da virtude eram meios para aperfeiçoar o ser humano moralmente, misticamente. Todas essas ideias eram enriquecidas por uma visão matemática do universo. Esse é um caminho possível para redescobrir a filosofia de Hipácia. Outras leituras podem e devem ser feitas.

 

REFERÊNCIAS

 

MARTINO, Giulio de; BRUZZESE, Marina. Las filósofas. Traducción de Mónica Poole. Valencia: Universitat de València, 1996.

 

MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. Volume 1. São Paulo: Paulus, 1981.

 

SALISBURY, Joyce. Encyclopedia of Women in the Ancient World. California: Abc-clio, 2001.

 

WAITHE, Mary Hellen. A History of Women Philosophers. 600 BC – 400 AD. Volume 1. Dordrecht: Springer, 1992.

 

Bibliografia

ARANHA, M. L. A. & MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 3ª ed. Rev. atual. São Paulo: Moderna, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MONDIN, B. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. 12ª ed. São Paulo: Paulus, 2001